02 de fevereiro de 2010
Resultado da ação do Estado que, por um lado, não garante a estrutura necessária para uma vida digna nas grandes cidades e, por outro, responde à criminalidade através de uma intervenção militar nesses territórios, a violência urbana tem transformado as periferias em espaços de resistência. Para o escritor uruguaio Raul Zibechi, a esquerda precisa enxergar este cenário e retomar a luta revolucionária, como uma alternativa ao crime para a juventude e à militarização imposta pelo Estado.
Bia Barbosa - Carta Maior
O título da mesa, em mais uma das atividades do FSM Temático da Bahia, neste domingo (31), era “Violência nas periferias urbanas e ameaça è democracia”, mas unanimemente, entre palestrantes e participantes, o centro do debate deveria ser a militarização e a violência do Estado nas periferias. A explicação é simples: ao contrário do que propagandeiam os meios de comunicação, os grupos dominantes e os responsáveis pelas políticas de segurança pública no país, o principal responsável pela violência que atinge a imensa maioria das periferias brasileiras não é o crime organizado, e sim o próprio Estado brasileiro.
“A violência de hoje das regiões metropolitanas é sintoma das condições em que vivem os trabalhadores e trabalhadoras nessas áreas. Faltam empregos, urbanização, equipamentos sociais, educação e espaços de convívio social. As pessoas vivem sem acesso aos direitos básicos à sobrevivência humana e, assim, se tornam reféns desta situação, sendo levadas à marginalidade. As áreas dominadas pelo tráfico e pelo crime organizado são aquelas onde o poder público não se faz presente”, explica Bartíria Lima da Costa, presidente da CONAM (Confederação Nacional das Associações de Moradores).
Neste contexto, a resposta do Estado à criminalidade crescente nas periferias não tem sido responder as suas causas estruturais, e sim promover uma intervenção com base na presença da polícia militar. Em muitas regiões, a polícia é a principal ou única presença do Estado nas periferias.
“Isso parte da criminalização da pobreza. No Uruguai, Argentina, Chile há muitas políticas sociais para a periferia, mas uma boa parte delas são formas de disciplinamento dos pobres”, acredita o escritor e ativista uruguaio Raul Zibechi. “A ameaça à democracia, na verdade, vem da suposta resposta que o Estado, apoiado por um setor da sociedade e pela mídia, dá a essa questão da violência: é uma resposta militar, violenta e policial. Tanto que organizações internacionais de direitos humanos já disseram que a polícia brasileira é a que mais mata no mundo. Essa é uma subversão completa da democracia”, critica o carioca Maurício Campos, da Rede Contra a Violência.
Somente em 2008, 2.340 pessoas foram mortas em Salvador e região metropolitana, das quais 60% tinham em seu atestado o auto de resistência da polícia militar. De acordo com a coordenação da campanha “Reaja ou será morta, reaja ou será morto”, o modelo de segurança pública no estado da Bahia não se alterou na gestão atual. “Exigimos a demissão do secretário de segurança pública, César Nunes. Esses números são uma aberração que precisamos bradar pelo país. E este cortejo de defuntos
que está atrás de nós nos convida a isso: a reagir”, afirma Hamilton Borges. “Se quisermos sobreviver, precisamos politizar a nossa morte, senão ela passará despercebida. Não somos reféns do medo veiculado pela mídia. Todos os dias somos ameaçados e podemos morrer. Mas o medo não nos neutraliza”, completa.
E se num momento havia a necessidade de um discurso de ataque aos negros e pobres nas periferias, por parte da elite conservadora, agora ele não é mais necessário, analisa a jornalista Suzana Varjão, do Movimento Estado de Paz, que articula comunicadores em torno do debate sobre o tema, e integrante do grupo gestor do Fórum Comunitário de Combate à Violência. Agora, o pensamento está embutido no próprio discurso da imprensa, em diálogo com os interesses das classes dominantes.
Mesmo a violência dos grupos criminosos, que representa um problema sério para as periferias, foi apontada no debate como resultante de uma ação estatal secundada pela classe dominante e pelo setor empresarial: o tráfico internacional e comércio global de armas. Na avaliação de Maurício Campos, a legislação internacional – imposta pelos Estados Unidos e que vigora em todo o mundo, materializada em convenções entre os países – que proíbe a comercialização de todas as drogas, incluindo as que sequer foram desenvolvidas, e, por outro lado, libera totalmente a produção de armas, sem controle dos Estados, criou um cenário propício para a proliferação de grupos armados nas periferias.
“A legislação absoluta conta o comércio de drogas tornou esta indústria extremamente lucrativa e seu combate via repressão tem gerado uma violência enorme. Isso somado à ausência de controle da venda de armas, por uma ação consciente do sistema interestatal, tem levado a uma situação caótica nas periferias”, afirma Campos.
Como pano de fundo desta fórmula mortífera, o crescimento do capitalismo financeiro que, também sem controle dos Estados, permite à indústria da droga esconder seus lucros no sistema monetário internacional, via remessa de dinheiro aos paraísos fiscais.
Território revolucionário
Para Maurício Campo, esta situação permite ao Estado e às classes dominantes manter uma guerra permanente e progressiva contra o povo, utilizando a política de segurança pública como uma forma de elitização das cidades. “Se não percebemos isso, faremos políticas pontuais que não resolverão um problema que é global. Temos que encarar a luta do ponto de vista imperialista. Trata-se aqui de discutir projetos diferentes de organização da sociedade. A violência recoloca a questão da luta de classes, de varrer o que ainda existe de racismo e colonialismo, no centro da nossa reflexão”, afirma.
Se há um aspecto positivo nisso tudo é que a violência dos grupos criminosos e do aparato estatal tem transformado as periferias em territórios de resistência, provocada pelo sentimento de injustiça social e indignação que todas essas populações cotidianamente. Foi isso o que demonstraram os fatos acontecidos em Caracas, na Venezuela, em 1999 ou em Santa Cruz, na Bolívia, em 2008.
“Ali, onde vivem as pessoas que não têm nada a perder, há o único movimento potencialmente anti-sistêmico, e a esquerda precisa compreender esse território a partir de uma análise diferente da que fazem a mídia e as elites. Se compreendermos porque os meninos das periferias entram em relação com o crime, saberemos que buscam, não racionalmente, um pouco de dinheiro, um pouco de sucesso, mas buscam também auto-estima, autonomia, não só financeira, mas pessoal, e buscam poder”, analisa Zibechi.
“Se não formos capazes de mostrar para eles outro pensamento, não vamos mudar essa realidade. E fazer isso significa a retomada, pelos movimentos, da luta pela mudança e pela revolução. Para esses meninos, a luta revolucionaria será uma alternativa, um caminho diferente da militarização, que retomará a utopia real da revolução. Muitos ficarão com o crime, mas muitos virão conosco”, acredita o escritor uruguaio.
“Isso não nos impede de atuar aqui e agora, e operar localmente para combater a violência. Mas a necessidade é a de demolir este modelo de Estado. A perspectiva ainda é a de outro Estado, outro modelo de nação. No capitalismo, nenhum sonho é possível”, conclui Hamilton Borges.